segunda-feira, fevereiro 05, 2007

O grande vilão - MMORPG

Continuando a história que parei com os jogos de estratégia (Starcraft, Warcraft, Civilization etc) o próximo estilo da lista são os MMORPG (Massive Multiplayer On-Line Role Play Games). Em tradução livre seria algo como: jogos de interpretação online e massivo para múltiplos jogadores. Tradução horrível, mas significa que são jogos de RPG (representação de personagens) em que inúmeras pessoas se conectam no mesmo "mundo" e interagem entre si.

O jogo que eu joguei era o Ultima Online. Devo ter passado perto de um ano jogando muitas horas por dia, ou melhor, muitas horas por noite e madrugadas. É um jogo clássico de RPG. Você cria um personagem, um avatar, e é transferido para o universo do jogo. Seu personagem pode ser um guerreiro, mago, comerciante, fabricante de armas e armaduras, mineiro, lenhador, e provavelmente qualquer profissão que você possa imaginar num mundo medieval fantástico. Qualquer ambição que você tenha na vida real pode ser transferida de alguma forma pra dentro do jogo.

Para desenvolver seu personagem você pode passar centenas de horas jogando de fato, ou utilizar programas que fazem seu personagem treinar automaticamente. Quanto melhor você configura esses programas, mais rápido seu personagem se fortalece. Mas para jogar de fato você gasta horas e horas explorando terrenos, florestas, cavernas, combatendo monstros, comprando e vendendo itens, etc. A quantidade e diversidade de opções do que se pode fazer lá dentro é descomunal.

Até aqui nada de mais, não fosse o fato de que a grande maioria das pessoas que você encontra (todo mundo exceto os vendedores de itens nas cidades) são outros jogadores reais que estão em outro ponto do Brasil (ou do mundo), também representando seus personagens, fortalecendo-os para poder participar de aventuras ou adquirir itens cada vez melhores.

Nesta época eu morava numa república com 7 pessoas, sendo 5 jogadores de UO, e 3 deles totalmente viciados. Tínhamos 4 computadores ligados em rede, onde passávamos 12 horas por dia no jogo, e as outras 12 horas o computador ficava ligado rodando os programas que fortaleciam automaticamente os personagens. Passamos provavelmente vários dias aprimorando esses programas para nos tornarmos cada vez mais poderosos.

Esse jogo tem a capacidade de fornecer todas as emoções e sentimentos que um ser humano precisa:
1) interação com outros seres humanos - o ser humano é um ser social, e precisa se socializar. Num mundo virtal com milhares de jogadores simultâneos você inevitavelmente faz amizades, ganha inimigos, respeita alguns jogadores e é respeitado por outros, tudo o que a interação social traz pra você no mundo real.
2) trabalho para crescer - você as vezes precisa trabalhar por horas e horas para se ter uma recompensa, exatamente o que acontece na vida real com os empregos. É maçante, é chato, muitas vezes você queria estar longe, mas você faz porque sabe que é importante e que vai render frutos.
3) ambições e objetivos - como o universo de opções de personagens é gigante, você pode ser qualquer coisa dentro do jogo. Comerciante, guerreiro, chefe de um clã, colecionador de itens, de casas, etc. Basta definir seu objetivo e ir atrás. Qualquer semelhança com os sonhos da vida real de todo mundo como o da casa própria, trabalhar com o que você gosta e ter um dia excitante atrás do outro por toda a vida não é mera coincidência.
4) apegos emocionais - tudo aquilo que você conquistou no jogo, uma arma, respeito dos outros jogadores, várias casas, etc é fruto do seu trabalho. Aquilo é seu e você pensa naquilo toda hora.

Esses são os quatro pontos que eu considero principais, mas não são os únicos. E qual a motivação de 3 marmanjos de mais de 20 anos para ficar 12 horas sem sair de casa, sem ir na faculdade, sem fazer nada a não ser ficar olhando seus personagens crescendo em poder, ao invés de investir esse tempo todos construindo algo na vida real? O JOGO É MAIS FÁCIL QUE A VIDA REAL. Em 3 meses é possível, com esta carga de trabalho, nos tornarmos uns dos 20, 30 personagens mais poderosos daquele universo, ganhar respeito, construir casas e castelos, acumular uma quantidade gigantesca de dinheiro e itens raros, a ponto de começarmos a distribuir o dinheiro de graça pra ganhar mais reconhecimento dos jogadores, etc.

Para 3 pós-adolescentes, que não aguentaram a pressão de uma faculdade de ponta de exatas, que bombaram em váárias matérias, que estão naquele momento em especial se sentindo um lixo, sentindo que não vencerão nunca na vida, encontrar um lugar que podem se tornar ricos, conhecidos, talvez até temidos, por centenas de outras pessoas em 3 meses, é uma perdição, um prato cheio, algo impossível de resistir.

E infelizmente isso não foi privilégio nosso não. A quantidade de viciados nesse tipo de jogo só cresce a cada ano. Claro que não é interessante para ninguém da indústria do entretenimento falar a respeito, pois seus jogos movimentam literalmente bilhões por ano, mas as histórias não são poucas. Os casos mais conhecidos são de coreanos que morreram jogando o Everquest, jogo com os mesmo princípios do Ultima Online mas com mais jogadores. O jogo já ganhou até um apelido, "Evercrack", de tão viciante que é. Claro que as pessoas que não tem a compulsão falam isso em tom de brincadeira, mas para alguém que tenha, a combinação é uma bomba. Relacionado ao Everquest existem várias histórias horríveis, como morte após mais de 50 horas seguidas de jogo, morte do filho pequeno pois os pais viciados esqueceram dele, suicídio por perder uma arma muito poderosa, ataques epiléticos seguidos de contusão fatal etc. Melhor parar por aqui.

Ao ler sobre esses casos percebe-se mais um agravante da doença. Ela é progressiva. Significa que todos os compulsivos, em maior ou menos velocidade, e sem acompanhamento, tem a chance de chegar nesse ponto. Minha salvação foi o emprego e o casamento. Não quero pensar no que seria da minha vida hoje se não tivesse parado, pelo menos parado com a inércia de horas e horas diárias de jogo.

Hoje em dia a versão warcraft (World of Warcraft) e a versão star wars prometem desbancar todos os outros jogos do tipo, sendo que o World of Warcraft já rendeu até um episódio do South Park retratando de forma engraçada (ou terrível) o que o jogo faz com as pessoas. Mas sem complicar as coisas, o negócio é simples:
- Esse tipo de jogo dá muito dinheiro pois cada um dos milhões de jogadores pagam uma mensalidade para jogar, ao invés de comprar o jogo e gastar dinheiro uma só vez.
- Tem menos problemas de pirataria, já que a chave do jogo original deve ser usada para se jogar online, e essa chave não pode ser duplicada.
- O jogo precisa ser apelativo o suficiente para que as pessoas continuem pagando todos os meses, independente dela jogar uma hora por semana ou quarenta.
- Os compulsivos tem a mesma chance de começar a jogar que todas as outras pessoas.

Assim, como o problema da compulsão não é divulgado e conhecido, os jogadores se acabam no jogo, eles não sabem o que está acontecendo, amigos e familiares não sabem o que está acontecendo, e as vidas deles começam a ir pro buraco. Estamos na era da informação e ninguém fala a respeito disso. Pelo menos alcoolismo, tabagismo e drogas já está bastante divulgado. Falta agora as outras bastante frequentes que são jogos de azar, comida e jogos eletrônicos (sem falar de outras que devem existir por aí mas que não devem ser reconhecidas como tal). O que eu mais gostaria era de saber que tinha a doença em 1998, e não em 2007. Não é tarde demais, mas é um tempo ridículo perdido.

Uma das coisas que eu mais quero é recuperar o tempo perdido jogando. Seu eu trabalhar com o dobro de energia, de ambição, de motivação, eu recupero esse tempo em 5 ou 6 anos. É possível manter essa motivação por 5 ou 6 anos? Não sei, mas tenho certeza de que é possível por 24 horas.

Jogadores Anônimos

Motivado pelos comentários em alguns posts vou começar a escrever novamente aqui. Espero que além de me ajudar, tudo o que escrevo possa vir a ajudar pessoas que passem pelo mesmo problema, mesmo que esse não seja o objetivo final do blog. Mas se mais alguém se identificar com o que eu passei e passo e isso ajudar a ver que essa pessoa não é uma aberração, não está sozinha e que esse é um problema real e sério que muitos passamos, então terá valido mais a pena ainda. Não desejo esse problema, essa doença, para realmente mais ninguém, mas desejo que todos que a possuem tenham consciência disso, para que não afete suas vidas como afetou a minha.

Muita coisa aconteceu nessas semanas. O clima em casa já esteve ótimo e já esteve novamente horrível, com idas e vindas, imagino, esperadas. Tensões extras com vestibular, morte na família, problemas de saúde com os cachorros, tudo se acumulando nesse começo de ano. Continuo acreditando que o tempo pode curar todas as feridas, mas acho que isso hoje é mais uma esperança do que um crença. Eu gostaria muito, muito mesmo, mas já não sei dizer se um dias as coisas voltarão a ser como eram. Minha esposa é muito forte, mas está sendo realmente difícil para ela. A única coisa que posso fazer, e continuar fazendo, dia após dia, é não esconder mais nada, falar das minhas angústias e deslizes, falar de tudo. Acho que quando se passarem alguns anos sem surpresas desagradáveis nós dois passemos a acreditar que nada nem remotamente parecido acontecerá novamente.

Eu era quase perfeito na visão dela, como ela fazia questão de me dizer sempre, e ouvir isso de que você considera que seja perfeito é uma das maiores felicidades que você pode ter. Isso eu tinha alcançado apenas sendo eu mesmo, o que é mais fantástico ainda. E agora isso está destruído. Eu tenho uma doença emocional, e eu escondi minha recaída. Isso me tornou bem distante de perfeito. Hoje tento dia após dia resgatar meu amor próprio, resgatar meu respeito próprio, porque só assim será possível retomar a vida de onde ela parou, alguns meses atrás. Quem sabe um dia eu possa chegar perto de novo de se perfeito para ela. Ou pelo menos ser digno. Espero que minha doença não acabe com o que a gente tem, ou tinha.

Bom, voltando ao tópico depois de desabafos, logo depois de contar para ela que eu tinha tido uma recaída, ela mencionou o JA (Jogadores Anônimos - link na lateral do blog), uma reunião como as da AA (Alcoólicos Anonimos), mas para jogadores compulsivos. Na primeira reunião na minha cidade fui até lá para conhecer.

Eu estava um tanto desconfiado da necessidade de participar das reuniões, de discutir problemas que não são exatamente da mesma espécie, mas alguma coisa tinha que mudar na minha vida. Estava bastante óbvio que eu não tinha mais força pra sozinho manter o jogo sob controle. Como ainda não posso fazer terapia particular e como o JA é tão absolutamente unanimidade entre seus participantes, fui para lá. Mas por inércia que por convicção. Estava com bastante medo de não ser bem recebido, mas todos somos jogadores compulsivos ali, independente da natureza do jogo. Existem jogadores de bingo, loteria, maquininha de bingo e o primeiro caso de jogos eletrônicos fui eu.

Num dos comentários dos outros posts vi que existe um movimento no Rio de Janeiro para se montar uma sala específica para jogos de entretenimento, o que seria excepcional. Como eu venho repetindo, é um problema grave e que ainda não é tratado com a seriedade necessária. A diferença entre uma sala de JA convencional e uma específica para o meu problema seria média, já que metade da terapia em JA é falar e metade é ouvir.

Quando você fala a respeito (ou escreve), você tira um peso das costas. Aquilo não fica mais consumindo 90% do seu pensamento. Não desaparece, obviamente, mas você consegue se distanciar um pouco, e se concentrar nas tarefas do dia ou em outras angústias. Nas reuniões de JA você tem o espaço para falar livremente sobre seus problemas com a certeza de que vai ser bem compreendido. E não é preciso se sentir deslocado (digo isso mas eu ainda me sinto bastante), pois como disse uma participante para mim: "nós perdemos algo que é possível ser recuperado, mesmo que difícil, que é o dinheiro. Você perdeu tempo, e isso não se recupera". Isso me tocou bastante e me ajudou a ver que todos em JA estão preocupados com o retorno a uma vida saudável e sem vício, independente do tipo de vício.

Quando você ouve outras histórias sobre a compulsão, que são mais graves ou menos graves que a sua, diferentes em sua natureza mas idênticas em sua essência, você acaba se sentindo inspirado a não jogar nunca mais. Obviamente não posso citar nenhuma história aqui, mas existe uma realidade de jogadores compulsivos que nós não imaginamos até ouvir da pessoa que está falando ali na frente que aconteceu com ela. O mais motivador é ouvir como viver um dia após o outro, sem pressa e abstinente, acumulando um mês, dois, três, seis, um ano, dois anos, etc mudou a vida delas, e é isso que eu quero pra mim. Não voltar a ficar alienado, não voltar a deixar o jogo tirar ou, se deus quiser, quase tirar tudo o que é mais importante na minha vida. Já tirou várias coisas, mas ainda tenho a esperança, e isso ele não conseguiu tirar de mim, e é nisso que eu vou me apoiar, abraçar, agarrar e fazer com que tudo volte ao normal.

Fui em duas reuniões na primeira semana, e depois acabaram se somando os problemas que citei no começo com algumas desculpas, e faltei em quatro. Voltei ontem à uma reunião, com novos participantes e energia renovada. O ambiente está menos estranho, já me sinto mais confortável. Não tanto de falar, pois ainda tenho medo de ser mal recebido (o que, repito, é ao mesmo tempo normal e absurdo), mas falar e escutar me dá forças para não jogar.

Joguei praticamente nada nesse tempo, mas joguei, com a desculpa de pressão por problemas pessoais. Isso parece inofensivo, mas é perigoso. É como brincar de tonto (aquela brincadeira onde você coloca um bastão com 1 metro de altura com a ponta no chão, encosta a testa na outra ponta, e fica rodando em volta dele uma 15 vezes, depois levanta e sai andando) na beira de um precipício. Talvez não seja nada, mas talvez acabe com tudo.

Sendo assim, reiniciei minha contagem de dias de abstenção, e vou reiniciar sempre que jogar qualquer jogo eletrônico, pois talvez até um dia eu possa vir a jogar com a minha esposa ou bater umas fichas no shopping sem grandes conseguências, mas não agora. Não existe jogar um pouco, existe jogar e ponto. Estou a apenas uma jogada do inferno, e garanto que se eu estiver num computador sozinho, estou mais próximo ainda.

Outra coisa que ouvi ontem é a importância de se segurar o primeiro impulso. A compulsão em si dura de 5 a 10 minutos, e se você se segurar nesse tempo, você tem grande chance de não ter recaída. Por isso a importância de telefonar pra alguêm quando estiver com a compulsão. Falar a respeito dela e do que você está sentindo para distrair a cabeça por 5 a 10 minutos é o suficiente. Eu trabalho com programação, ligado 100% do tempo na internet. Para somar às minhas dificuldades ainda tenho facilidade de achar sites com download de jogos em apenas alguns minutos, baixar e jogar com uma conexão empresarial extra-rápida, tudo fica em menos de 10 minutos. Mas agora, sabendo disso, sempre que bater a vontade (que não são poucas vezes) vou sair da frente do computador. Vou levantar e tomar uma água, bater um papo com quem estiver perto, telefonar pra minha esposa, sei lá. O fato é que se eu não tenho certeza de que não vou conseguir instalar algo no meu computador, então tenho que sair de perto dele. É especialmente duro trabalhar pensando nisso tantas vezes, mas se é assim que vai ser, então tenho que me conformar. Se eu me segurar pelos 10 minutos, talvez 15, eu me seguro por mais aquele dia.

Estou fazendo um paralelo de tudo o que aconteceu com a minha vida, e de como e o quê o jogo destruiu, e me vem um pensamento paradoxal. Em tantos e tantos jogos eu sempre me via numa situação difícil, e depois de ralar muito saía por cima. Claro que isso tava no script do jogo e era programado, mas hoje estou acreditando que isso é possível na vida real. Sem passe de mágica, sem megalomania, sem ilusões, apenas trabalhando muito e vivendo um dia após o outro. Acredito que se eu ralar muito, não cometer os mesmo erros e me manter afastado das ilusões, vivendo só no mundo real, as coisas podem voltar ao normal, ou perto disso. Como eu falei antes, são mais esperanças do que qualquer outra coisa, mas graças a deus que elas não morreram, estão aí para me fazer acreditar num futuro bom. Então o jogo que destruiu tudo poderia ter me ensinado algo? Será que eu aprendi com o jogo que se você trabalhar muito as coisas comecem a dar certo pra você? Isso é muito estranho e não tenho respostas pra isso agora. É difícil hoje dar qualquer crédito que seja ao jogo. É apenas algo que quer me manter longe.

O fato é que quanto mais escrevo (pelo tamanho dos posts da pra perceber ;-) ) e falo a respeito, mais afastado consigo me manter. Falo bastante com a minha esposa e falo no JA, e aconselho isso a todo mundo que passa pelo mesmo problema. Não tenha vergonha de falar sobre isso com alguém de sua confiança, mesmo que isso possa abalar essa confiança. Sozinho você só adia o desmoronamento de tudo, mas junto com alguém (JA é um ótimo exemplo) você tem chances, e com certeza consegue sair e controlar, mesmo que isso possa causar o desmoronamento imediato. Entre o risco de um término imediato mas com chances de ter um "depois", e a certeza de um término a longo prazo, escolho cem vezes a chance do "depois".