O grande vilão - MMORPG
Continuando a história que parei com os jogos de estratégia (Starcraft, Warcraft, Civilization etc) o próximo estilo da lista são os MMORPG (Massive Multiplayer On-Line Role Play Games). Em tradução livre seria algo como: jogos de interpretação online e massivo para múltiplos jogadores. Tradução horrível, mas significa que são jogos de RPG (representação de personagens) em que inúmeras pessoas se conectam no mesmo "mundo" e interagem entre si.
O jogo que eu joguei era o Ultima Online. Devo ter passado perto de um ano jogando muitas horas por dia, ou melhor, muitas horas por noite e madrugadas. É um jogo clássico de RPG. Você cria um personagem, um avatar, e é transferido para o universo do jogo. Seu personagem pode ser um guerreiro, mago, comerciante, fabricante de armas e armaduras, mineiro, lenhador, e provavelmente qualquer profissão que você possa imaginar num mundo medieval fantástico. Qualquer ambição que você tenha na vida real pode ser transferida de alguma forma pra dentro do jogo.
Para desenvolver seu personagem você pode passar centenas de horas jogando de fato, ou utilizar programas que fazem seu personagem treinar automaticamente. Quanto melhor você configura esses programas, mais rápido seu personagem se fortalece. Mas para jogar de fato você gasta horas e horas explorando terrenos, florestas, cavernas, combatendo monstros, comprando e vendendo itens, etc. A quantidade e diversidade de opções do que se pode fazer lá dentro é descomunal.
Até aqui nada de mais, não fosse o fato de que a grande maioria das pessoas que você encontra (todo mundo exceto os vendedores de itens nas cidades) são outros jogadores reais que estão em outro ponto do Brasil (ou do mundo), também representando seus personagens, fortalecendo-os para poder participar de aventuras ou adquirir itens cada vez melhores.
Nesta época eu morava numa república com 7 pessoas, sendo 5 jogadores de UO, e 3 deles totalmente viciados. Tínhamos 4 computadores ligados em rede, onde passávamos 12 horas por dia no jogo, e as outras 12 horas o computador ficava ligado rodando os programas que fortaleciam automaticamente os personagens. Passamos provavelmente vários dias aprimorando esses programas para nos tornarmos cada vez mais poderosos.
Esse jogo tem a capacidade de fornecer todas as emoções e sentimentos que um ser humano precisa:
1) interação com outros seres humanos - o ser humano é um ser social, e precisa se socializar. Num mundo virtal com milhares de jogadores simultâneos você inevitavelmente faz amizades, ganha inimigos, respeita alguns jogadores e é respeitado por outros, tudo o que a interação social traz pra você no mundo real.
2) trabalho para crescer - você as vezes precisa trabalhar por horas e horas para se ter uma recompensa, exatamente o que acontece na vida real com os empregos. É maçante, é chato, muitas vezes você queria estar longe, mas você faz porque sabe que é importante e que vai render frutos.
3) ambições e objetivos - como o universo de opções de personagens é gigante, você pode ser qualquer coisa dentro do jogo. Comerciante, guerreiro, chefe de um clã, colecionador de itens, de casas, etc. Basta definir seu objetivo e ir atrás. Qualquer semelhança com os sonhos da vida real de todo mundo como o da casa própria, trabalhar com o que você gosta e ter um dia excitante atrás do outro por toda a vida não é mera coincidência.
4) apegos emocionais - tudo aquilo que você conquistou no jogo, uma arma, respeito dos outros jogadores, várias casas, etc é fruto do seu trabalho. Aquilo é seu e você pensa naquilo toda hora.
Esses são os quatro pontos que eu considero principais, mas não são os únicos. E qual a motivação de 3 marmanjos de mais de 20 anos para ficar 12 horas sem sair de casa, sem ir na faculdade, sem fazer nada a não ser ficar olhando seus personagens crescendo em poder, ao invés de investir esse tempo todos construindo algo na vida real? O JOGO É MAIS FÁCIL QUE A VIDA REAL. Em 3 meses é possível, com esta carga de trabalho, nos tornarmos uns dos 20, 30 personagens mais poderosos daquele universo, ganhar respeito, construir casas e castelos, acumular uma quantidade gigantesca de dinheiro e itens raros, a ponto de começarmos a distribuir o dinheiro de graça pra ganhar mais reconhecimento dos jogadores, etc.
Para 3 pós-adolescentes, que não aguentaram a pressão de uma faculdade de ponta de exatas, que bombaram em váárias matérias, que estão naquele momento em especial se sentindo um lixo, sentindo que não vencerão nunca na vida, encontrar um lugar que podem se tornar ricos, conhecidos, talvez até temidos, por centenas de outras pessoas em 3 meses, é uma perdição, um prato cheio, algo impossível de resistir.
E infelizmente isso não foi privilégio nosso não. A quantidade de viciados nesse tipo de jogo só cresce a cada ano. Claro que não é interessante para ninguém da indústria do entretenimento falar a respeito, pois seus jogos movimentam literalmente bilhões por ano, mas as histórias não são poucas. Os casos mais conhecidos são de coreanos que morreram jogando o Everquest, jogo com os mesmo princípios do Ultima Online mas com mais jogadores. O jogo já ganhou até um apelido, "Evercrack", de tão viciante que é. Claro que as pessoas que não tem a compulsão falam isso em tom de brincadeira, mas para alguém que tenha, a combinação é uma bomba. Relacionado ao Everquest existem várias histórias horríveis, como morte após mais de 50 horas seguidas de jogo, morte do filho pequeno pois os pais viciados esqueceram dele, suicídio por perder uma arma muito poderosa, ataques epiléticos seguidos de contusão fatal etc. Melhor parar por aqui.
Ao ler sobre esses casos percebe-se mais um agravante da doença. Ela é progressiva. Significa que todos os compulsivos, em maior ou menos velocidade, e sem acompanhamento, tem a chance de chegar nesse ponto. Minha salvação foi o emprego e o casamento. Não quero pensar no que seria da minha vida hoje se não tivesse parado, pelo menos parado com a inércia de horas e horas diárias de jogo.
Hoje em dia a versão warcraft (World of Warcraft) e a versão star wars prometem desbancar todos os outros jogos do tipo, sendo que o World of Warcraft já rendeu até um episódio do South Park retratando de forma engraçada (ou terrível) o que o jogo faz com as pessoas. Mas sem complicar as coisas, o negócio é simples:
- Esse tipo de jogo dá muito dinheiro pois cada um dos milhões de jogadores pagam uma mensalidade para jogar, ao invés de comprar o jogo e gastar dinheiro uma só vez.
- Tem menos problemas de pirataria, já que a chave do jogo original deve ser usada para se jogar online, e essa chave não pode ser duplicada.
- O jogo precisa ser apelativo o suficiente para que as pessoas continuem pagando todos os meses, independente dela jogar uma hora por semana ou quarenta.
- Os compulsivos tem a mesma chance de começar a jogar que todas as outras pessoas.
Assim, como o problema da compulsão não é divulgado e conhecido, os jogadores se acabam no jogo, eles não sabem o que está acontecendo, amigos e familiares não sabem o que está acontecendo, e as vidas deles começam a ir pro buraco. Estamos na era da informação e ninguém fala a respeito disso. Pelo menos alcoolismo, tabagismo e drogas já está bastante divulgado. Falta agora as outras bastante frequentes que são jogos de azar, comida e jogos eletrônicos (sem falar de outras que devem existir por aí mas que não devem ser reconhecidas como tal). O que eu mais gostaria era de saber que tinha a doença em 1998, e não em 2007. Não é tarde demais, mas é um tempo ridículo perdido.
Uma das coisas que eu mais quero é recuperar o tempo perdido jogando. Seu eu trabalhar com o dobro de energia, de ambição, de motivação, eu recupero esse tempo em 5 ou 6 anos. É possível manter essa motivação por 5 ou 6 anos? Não sei, mas tenho certeza de que é possível por 24 horas.